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quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Reprovação não devia ser uma possibilidade numa educação de qualidade (Parte 1)

A cultura escolar brasileira coloca para o estudante, e somente para ele, a responsabilidade de aprender o que se ensina na escola. Consolidou-se a visão do autodidatismo e da expectativa de aprendizagem associada a noção distorcida de meritocracia. Ora, a aula foi a mesma para todo mundo e teve quem demonstrasse aprendizagem, por que então os demais não aprenderam? Essa pergunta é apenas retórica, a resposta está sedimentada: só depende do aluno estudar e aprender, pois o conteúdo foi passado da mesma forma. Para checar esse pressuposto, basta lembrar de reuniões da escola com os pais, essa máxima sempre aparece.

Um sistema baseado em aulas expositivas, como claramente é o nosso, parte do pressuposto que para desenvolver aprendizagem dos estudantes, basta disponibilizar informações sobre os conteúdos selecionados e organizados no currículo da escola. Por conta deste pressuposto, talvez, sejamos tão obcecados em dar todos os conteúdos programados para o ano, mesmo que para isso precisemos deixar a grande maioria dos estudantes para trás, sem aprender efetivamente os conteúdos abordados. É só observar o resultado das avaliações internas de qualquer escola. O percentual de alunos com notas abaixo da média é gritante, mas visto com uma normalidade arrepiante. A explicação para as notas baixas é muito simples: os alunos não estão interessados nos assuntos da escola. Será mesmo?

Não tenho outra metáfora mais suave para ilustrar essa tese: a escola é pensada no Brasil para ser um teste de sobrevivência à selva, cheia de armadilhas e missões perigosas que envolvem pântanos cheios de jacarés e passagem por areia movediça. Os sobreviventes tem um fluxo de escolarização regular, o que acontece com 61,4% dos jovens de 15 a 17 anos que cursam o ensino médio, de acordo com a PNAD de 2014. Os demais, por outro lado, não conseguiram atravessar o percurso, ficando reprovados sucessivamente (que é o equivalente a mordidas de um jacaré, na metáfora) e que muitos tiveram que abandonar a escola precocemente, ainda no ensino fundamental (o que é equivalente a ser engolido pela areia movediça do pântano metafórico).

O Brasil consegue colocar quase a totalidade das crianças na escola no primeiro ano de escolarização. Mas não consegue criar as condições para permanência. É evidente que essa questão não está associada apenas ao desenho pedagógico da escola. Há questões sociais graves em nosso país, e por falta de uma rede de proteção robusta para crianças e jovens, que as protejam dos vários fatores sociais de risco que as ameaçam diariamente num cenário de extrema desigualdade de acesso à oportunidades, a permanência na escola é um desafio que deve mobilizar vários setores do poder público, e não é, portanto, somente da escola. Mas daí afirmar que está tudo bem com o nosso conceito de ensino e aprendizagem e jogar tudo para a conta dos fatores externos, é demais. A cultura da reprovação, símbolo maior do esforço de jogar para os alunos a responsabilidade por aprender, contribui para que o estudante não permaneça na escola.

Quero falar mais sobre a reprovação trazendo a percepção de Sérgio Costa Ribeiro. Num artigo bastante citado, de 1991, intitulado A pedagogia da repetência, esse pesquisador afirma o seguinte: "Parece que a prática da repetência está contida na pedagogia do  sistema como um todo. É como se fizesse parte integral da pedagogia,  aceita por todos os agentes do processo de forma natural. A persistência  desta prática e da proporção desta taxa nos induz a pensar numa verdadeira  metodologia pedagógica que subsiste no sistema, apesar de todos  os esforços no sentido de universalizar a educação básica no Brasil."

Uma educação emancipadora e que tem em sua base a garantia de direitos, não pode ter a possibilidade da reprovação como fio condutor do processo educativo. Ao contrário, o prazer em desenvolver conhecimentos significativos é que deve fazer parte do imaginário de educadores e estudantes no cotidiano escolar. Os sistemas de ensino e as escolas precisam estar orientadas para garantir aos estudantes o direito de aprender. A reprovação, ao contrário do que temos hoje, não pode ser utilizado como recurso didático para mobilizar crianças e jovens a estudarem mais. Um outro Projeto Político Pedagógico é possível, pautado numa visão mais inclusiva de educação.

Não quero passar a ideia de culpabilização das escolas e retirada das responsabilidades dos estudantes. Não é tão simples assim. O protagonismo estudantil é uma bandeira que prezo muito. Mas não podemos cair na tentação de, em nome desse protagonismo, criar um regime escolar baseado nas exceções, onde quem conseguiu por conta própria superar todos esses desafios é a prova de que não há problemas com o processo educativo, e sim com os estudantes. A escola é responsável sim em estabelecer um clima de ensino e aprendizagem inclusivo, que consiga dar conta em assistir necessidades educativas específicas dos alunos que não conseguem aprender somente com o que é apresentado de forma massiva para todos por meio das aulas. Outras possibilidades educativas precisam ser pensadas para não deixarmos nenhum estudante desprovido do seu direito de aprender.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Uma escola pública democrática e republicana (Parte 2)

Elaborar um projeto pedagógico que proporcione emancipação intelectual aos jovens é o grande desafio da escola pública.

Nessa perspectiva, a questão colocada é a seguinte: como estruturar um projeto de aprendizagem de modo a consolidar o engajamento desses sujeitos a vida escolar na busca pela autonomia intelectual?

De forma proposital, a pergunta não faz referência a projeto de ensino, e sim de aprendizagem. Não se trata apenas de questão semântica, mas de mudança de paradigma com vista a uma educação pautada na garantia de direitos, no caso, o da aprendizagem.

Quando falamos projeto de ensino, a responsabilidade da escola é com a transmissão sistemática dos conteúdos. Ao estudante cabe ir atrás do professor e se responsabilizar por sua aprendizagem. Quando o aluno não consegue, é reprovado ou abandona precocemente a escola.

Numa escola que se quer republicana, o foco é a garantia do direito. Assim, escola boa é aquela onde se aprende, e não, simplesmente, onde se ensina. Leva tempo para se perceber que o ensino, descolado de um rigoroso processo de acompanhando da aprendizagem, não garante esse direito.

É preciso uma postura proativa por parte dos profissionais da escola identificando as dificuldades de aprendizagem apresentada por cada um dos estudantes com o propósito de se elaborar estratégias para ajudá-los a desenvolverem seus processos de aprendizagem. Requer, portanto, análise dos processos avaliativos e uma gestão pedagógica que permita a inclusão de todos ao projeto político.

O sistema educacional brasileiro está erguido sobre um pensamento pedagógico autoritário, pouco dialógico, que desenha o currículo a partir de uma hierarquia de saberes e desconsidera, em grande medida, os interesses dos jovens em desenvolver aprendizagens que se relacionam aos seus projetos de vida.

No modelo curricular predominante, o mapa de disciplinas é definido pela escola, e os estudantes são obrigados a seguir essa pré-definição. Com um mapa curricular rígido assim, claramente enfrentaremos problemas graves quanto a garantia do direito à aprendizagem para todos, pois se parte do pressuposto fabril da linha de produção, onde os alunos como produtos da escola precisam obrigatoriamente passar por todos os processos de ensino disponíveis.

Nesse modelo, ignora-se as diferenças e os interesses individuais, tornando a escola desinteressante para a maioria dos jovens.

Na perspectiva de criar uma nova estrutura curricular, está em curso nas escolas regulares de ensino médio em tempo integral no Ceará uma proposta de desenho dos tempos de aprendizagem mais flexível.

Das 45 horas semanais, 30 são destinadas aos conteúdos clássicos do currículo, organizados em disciplinas como hoje a conhecemos. Nas demais 15 horas ocorrem as atividades mais flexíveis, a saber: 4h para o Núcleo Trabalho Pesquisa e Práticas Sociais (NTPPS); 1h para Formação para a Cidadania, relacionada ao Projeto Professor Diretor de Turma; e 10h são destinadas aos Tempos Eletivos, as quais nos deteremos neste artigo.

Os Tempos Eletivos estão organizados numa perspectiva de semestralidade. Assim, são 5 temas eletivos com 2h semanais que o estudante pode escolher em cada semestre. Os Tempos Eletivos são ofertados em horários convergentes para todas as turmas de tempo integral, ou seja, no mesmo horário, os estudantes das diferentes turmas e séries estão na sala em que será desenvolvido o tempo eletivo.

Neste modelo, para deixar claro, estudantes das três séries do ensino médio podem estudar, na mesma sala, os mesmos temas eletivos, criando novas interações sócio educativas, pautadas nos mesmos objetivos de aprendizagem.

Os Tempos Eletivos trazem uma grande inovação - já garantida pela LDB de 1996 sem a necessidade de alteração proposta pela controversa Medida Provisória do Governo Temer - relacionada a diversificação do currículo do ensino médio, permitindo itinerários formativos que oportunizem aos estudantes o aprofundamento de temas de seus interesses e necessidades.

Desta forma, os estudantes poderão estudar ao longo dos 3 anos do ensino médio 30 temas eletivos, compondo um histórico escolar específico, único, que registra os tempos de estudo em áreas de seu interesse. 

A escola, no âmbito dessa proposta, poderá dar atenção específica para os estudantes que requerem o fortalecimento das competências básicas de leitura, escrita e raciocínio lógico matemático ao oferecer temas eletivos estruturantes do saber cognitivo e, ao mesmo tempo, criar oportunidades avançadas de aprendizagens em áreas específicas, como línguas estrangeiras e tecnologia, por exemplo.

Essa inovação pedagógica busca abrir caminhos para um desenho de escola para os jovens sintonizada com seus projetos de vida. As trilhas de saberes, numa escola republicana, precisam ser diversas e significativas. Respeitar a diversidade típica dos seres humanos é diversificar os itinerários formativos.