sábado, 21 de janeiro de 2017

Educação pública em cooperação com os municípios: o exemplo do Ceará

A educação pública é uma agenda complexa em qualquer lugar do mundo. Mas em países com as dimensões territoriais do Brasil, as estratégias para garantir o direito à educação de qualidade para todos precisam ser criativas e pautada num assertivo comprometimento político. Não à toa, a Constituição Federal e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação discorrem sobre a divisão de responsabilidades entre os entes federados, tendo em vista se construir instâncias de governança para investimento focado e acompanhamento temático, no caso da educação, de cada nível de ensino.

A questão central desse debate no Brasil é que essa divisão de responsabilidades não veio acompanhada, efetivamente, de uma estrutura de cooperação técnica e financeira entre as esferas do poder público. Não é por falta de esforço. Muitos programas foram desenhados nas diversas áreas na busca de criar tal cooperação. Não é fácil encontrar a medida certa entre o apoio, o respeito à autonomia do ente federado e a pactuação de resultados. A cooperação que nos referimos, portanto, deve ser concebida numa perspectiva de corresponsabilização pela agenda pública em análise.

No Ceará, em 2007, instituiu-se um desenho de política pública que temos na conta de inovador quanto ao estabelecimento de um efetivo pacto de cooperação entre o estado e todos os 184 municípios para alfabetização das crianças até o segundo ano de escolarização. A seguir, descreveremos, em linhas gerais, os principais processos relacionados a esta cooperação.

Primeiro, o diagnóstico. Em 2004, foi instituído o Comitê Cearense para a Eliminação do Analfabetismo Escolar, composto pela Assembleia Legislativa, UNICEF, APRECE, UNDIME/CE, INEP/MEC, e Universidades Cearenses: UECE, UFC, UVA, URCA e UNIFOR. Uma das ações foi a realização de um diagnóstico do nível de alfabetização em um grupo de crianças que terminaram a 1ª série do ensino fundamental - hoje esta série corresponde ao 2º ano, crianças com 7 anos de idade - , em 360 escolas públicas de 36 municípios. Dessa amostra, 85% não conseguiram ler um pequeno texto de forma adequada e menos da metade das crianças escreveram um texto simples.

Segundo, a definição do foco para pactuação de resultados. Com o problema identificado, e dando continuidade a uma iniciativa da APRECE, UNIDIME e UNICEF que criaram o Programa Alfabetização na Idade Certa (PAIC), o governo do Estado assumiu, em 2007, a responsabilidade de mobilizar os municípios para trabalhar um tema muito específico: a alfabetização de todas as crianças até os 7 anos de idade, ao término do 2º ano do ensino fundamental. O alcance do resultado não era responsabilidade apenas de cada município, mas do Estado, também.

Terceiro, sistematização do apoio técnico. Foi criada uma Coordenadoria na Secretaria da Educação voltada especificamente para a Cooperação com os Municípios. Para apoiar as Secretarias Municipais, criou-se cinco eixos de atuação: gestão da educação municipal; avaliação externa; alfabetização; educação infantil; literatura infantil e formação do leitor. Com essa estrutura, os municípios passaram a receber acompanhamento processual para a implementação de ações em rede com foco na alfabetização. Além das ações sistêmicas, as escolas com melhores resultados passaram a ser reconhecidas com o Prêmio Escola Nota 10 e foram desafiadas a apoiar outras escolas com desempenho que requeria melhoria.

Quarto, engajamento do chefe do executivo. A complexidade dessa agenda exige a atenção e liderança do chefe do executivo. Para estimular este engajamento, foi alterado a Lei que regula a redistribuição do ICMS. Na nova regra, 18% dos 25% do produto de arrecadação deste imposto que são distribuídos aos municípios passaram a considerar os resultados da avaliação de desempenho dos alunos do 2º e 5º anos e a taxa de aprovação das séries iniciais do ensino fundamental. Esta fórmula fez com que a pasta da educação fosse assumida por pessoas com perfil técnico, elevando a profissionalização dos serviços educacionais, com o monitoramento permanente do prefeito em relação aos resultados. Ora, a educação podia proporcionar aumento ou diminuição de recursos para o município.

O Ideb de 2015 mostrou que esse desenho de cooperação conseguiu resultados expressivos. Enquanto a meta do Ideb de 2015 para os anos iniciais da rede pública do Ceará apontava 4,2, alcançou-se 5,7, e todos os municípios superaram suas respectivas metas. É importante destacar dois dados: em 2005, o Ideb dos anos iniciais da rede pública do Ceará era 2,8 e a meta para 2021 era de 5,1. Não resta dúvida de que o ritmo de crescimento do Ceará em comparação aos demais Estados foi bastante diferenciado, aproximando-se dos resultados obtidos por Estados situados em regiões brasileiras mais desenvolvidas economicamente.

Esta política vem se revelando uma das mais bem sucedidas estratégias de correção da distorção idade-série. Crianças alfabetizadas nos primeiros anos de escolarização ampliam significativamente as chances de sucesso nas demais etapas da educação básica.

A principal lição que este desenho de política pública traz é que a educação precisa ser vista como um processo integrado. Diante do enorme desafio para oferecer uma educação verdadeiramente de qualidade, inclusiva, que garanta o direito à aprendizagem a todos, é importante que haja a pactuação de compromissos nacionais, que se afirme como eixo condutor da cooperação entre os entes federados. No caso cearense, alfabetizar crianças na idade certa foi o primeiro passo para se consolidar a expectativa de qualidade educacional. Por um tempo, essa foi "a agenda" que canalizou a energia e recursos prioritariamente.

O nosso argumento principal é que ações de cooperação requerem a pactuação para alcance de um objetivo claro, socialmente aceito, e que seja ampliado com o tempo. Depois de 9 anos de desenvolvimento do Programa, por exemplo, já é possível ampliar os objetivos, expandindo ações e recursos adicionais para as demais etapas do ensino fundamental.

Artigo publicado no Nexo, em 17 de janeiro de 2017.
Clique aqui para acessar a publicação.

sábado, 14 de janeiro de 2017

Escola em Tempo Integral: oportunidade para promover equidade

Imagem: https://ares.unasus.gov.br/acervo/bitstream/handle/ARES/2346/igual-equi.jpg?sequence=1&isAllowed=y

Uma escola pautada nos princípios republicanos precisa se estruturar para garantir aprendizagem a todos os estudantes... A todos. Vou repetir isso sempre!

Esse princípio deve guiar escolas públicas que funcionam em qualquer regime de tempo: 4 ou 9h diárias. Mas é no tempo integral que pode se criar a oportunidade de estruturar uma educação menos "massificada" e mais focada no acompanhamento individual dos estudantes e que apresente uma proposta pedagógica que permita o acompanhamento da aprendizagem de cada sujeito.

O tempo integral, em processo de consolidação como política pública educacional no Brasil, deve ser uma oportunidade para acompanhamento do desenvolvimento individual para a efetiva inclusão ao direito de aprender dos alunos.

Ao contrário do que é tentador pensar por conta de nossa trajetória como aluno e professor: tempo integral não deve ser apenas a oportunidade de "ver" toda a matéria de cada disciplina já que o tempo parcial não permite. Esse seria um objetivo muito limitado e míope.

Pensar o tempo integral apenas como condição de dar mais matéria é estar preso a um conceito esquizofrênico que define educação de qualidade tendo como referência a quantidade de conteúdos ministrados em cada disciplina, e não no que é realmente relevante se aprender. Nesse modelo, se os conteúdos foram efetivamente aprendidos, é um detalhe. Ministrá-los, é suficiente!

Somos tentados a ofertar educação do mérito, que reconhece os "melhores" e "despreza" os que ficam para trás. Ora, o "fracasso" escolar, da mesma forma que a corrupção, infelizmente, é tolerado em nosso querido Brasil. Esse paradigma precisa ser quebrado. É preciso ser intolerante a essas duas mazelas!

Uma alternativa em uso em algumas escolas para não deixar ninguém para trás é o nivelamento. A própria palavra é inadequada para um processo educativo, mas sua prática é ainda mais ineficiente.

No desenvolvimento do "nivelamento", caricaturalmente, é oferecido novamente aulas de conteúdos básicos de leitura e raciocínio lógico por um tempo, preferencialmente nos primeiros dias de aula do ano, e após esse período se define que os alunos estão preparados para dar continuidade aos conteúdos do currículo da escola.

Essa estratégia, perdão aos praticantes, não dialoga bem com a necessidade de promoção da equidade. Isso porque é dado esse tratamento "diferenciado" novamente para "todos" e na lógica de transmissão de conteúdos, no mesmo formato que não foi suficiente para a aprendizagem dessas competências em anos anteriores.

Do que é preciso, então?

Sem a pretensão de esgotar possibilidades, cito alguns elementos práticos que podem compor um plano de promoção da equidade na escola:

1. Elaborar uma matriz de referência de competências basilares que todo aluno precisa dominar no que diz respeito a língua materna e raciocínio lógico, adequado a cada etapa de escolarização. Essa matriz precisa ser de conhecimento de todos na escola, principalmente dos alunos.

2. Desenvolver instrumentos de sondagem e avaliação contínua para acompanhar o desenvolvimento dos estudantes ao longo do tempo. (Não somente no período do nivelamento, quando houver).

3. Promover acompanhamento pedagógico diferenciado para quem precisa de mais atenção ao longo de todo o processo educativo, em qualquer série que o aluno esteja cursando. Ter um currículo flexível, com eletivas, ajuda nesse processo de desenvolvimento do trabalho pedagógico mais personalizado a cada estudante.

O tema equidade renderá muitas discussões ainda. E tomara que seja assim. Se o objetivo principal da oferta do tempo integral não for a promoção da equidade, estaremos perdendo uma grande oportunidade de construirmos um modelo pedagógico verdadeiramente democrático e republicano.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Reprovação não devia ser uma possibilidade numa educação de qualidade (Parte 2)

Sistemas educacionais que conseguem proporcionar as melhores oportunidades de aprendizagem têm um elemento em comum: as escolas acompanham a aprendizagem numa perspectiva diagnóstica e processual, com foco em identificar o domínio das competências essenciais da língua materna, bem como das relacionadas ao raciocínio lógico matemático, e estão preparadas para prover atendimento diferenciado aos estudantes quando necessário.

A justificativa para esse acompanhamento da aprendizagem de forma sistemática é simples: a reprovação não está no horizonte dos profissionais da escola e nem dos estudantes. Ao invés da propagação do medo da possível reprovação - que na maioria dos casos é usada como fator "motivacional" para que os alunos estudem o "suficiente" e prestem a atenção nas aulas ministradas - o único objetivo deve ser o sucesso acadêmico. Este princípio é muito difícil de ser implementado num regime educacional autoritário e fechado, como o brasileiro. Mas é possível identificar movimentos no país na direção de quebrar esse paradigma, o que é bastante animador.

Adotando essa perspectiva, o "fracasso" escolar não deve ser visto com normalidade. Sua ocorrência evidencia, em tese, as falhas no processo de acompanhamento da aprendizagem e das estratégias de intervenção pedagógica adotadas pela escola, e precisam ser reavaliadas e novamente submetidas a planejamento. Sob esse ponto de vista, é impensável se transferir para o aluno e sua família, simplesmente, a responsabilidade pelo sucesso acadêmico. Afinal de contas, aprender é um direito! E as instituições educacionais precisam se responsabilizar em garantir esse direito.

Isso não é um jogo de palavras. Muito além disso, trata-se de princípios fundantes da prática pedagógica que tem por base um processo acolhedor e inclusivo. O contrário disso é excludente e gerador do elitismo histórico que só aumenta as desigualdades quanto às oportunidades de aprendizagem ao longo da vida.

O Projeto Político Pedagógica que não tem a reprovação em vista precisa ser, necessariamente, flexível. Isso quer dizer que os tempos escolares devem permitir aos estudantes um acompanhamento adequado às suas características, a partir da concepção de propostas didáticas e tempos diferenciados, que possibilitem um trabalho focado no fortalecimento da aprendizagem para que todos os alunos tenham êxito.

Quando a organização dos tempos não é flexível, como promover um ensino adequado aos estudantes considerando os diferentes rendimentos acadêmicos, se todos estão "enquadrados" na mesma referência de tempo e espaço de acordo com a sua série e turma?

Antes que a conclusão do leitor, induzido por esta pergunta, seja de que estou defendendo a enturmação de alunos por nível de rendimento, é melhor esclarecer que não se trata disso. A solução para esta situação é mais complexa. A enturmação por este critério em busca de uma utópica homogeneização de rendimento dos estudantes com o pretexto de melhorar o trabalho pedagógico, tornado-o mais diretivo, é um equívoco e promove, quando implementada, exclusão e diferenciação de tratamento: para uns a excelência, para outros apenas o básico.

O que penso é justamente o contrário: a excelência do ensino, medida pela aprendizagem do que se propõe no currículo, deve ser para todos. A baixa proficiência em leitura e raciocínio lógico, por exemplo, não pode ser um impedimento para o alcance do sucesso escolar. Mas para que não seja de fato um impedimento, a escola precisa ter uma boa estrutura de acompanhamento e capacidade de diferenciar a proposta de ensino de acordo com as necessidades de aprendizagem de cada estudante.

Uma estratégia possível é a flexibilização do currículo e dos tempos de aprendizagem. Neste entendimento, a organização das atividades de aprendizagem deve ter por referência tempos comuns e tempos específicos para grupos de alunos que reúnam interesses por aprofundamentos dos conteúdos estudados ou que necessitem de mais atenção quanto ao desenvolvimento de competências cognitivas necessárias para o bom desempenho escolar.

Neste contexto, flexibilização do currículo, que tanto se fala atualmente, não é apenas uma dinâmica para melhorar o clima escolar. Está associada também a necessidade de criar oportunidade de intensificação dos processos de ensino para os alunos que mais precisam de atenção; e evitar, utilizando de todas os mecanismos possíveis, a reprovação.