A cultura escolar brasileira coloca para o estudante, e somente para ele, a responsabilidade de aprender o que se ensina na escola. Consolidou-se a visão do autodidatismo e da expectativa de aprendizagem associada a noção distorcida de meritocracia. Ora, a aula foi a mesma para todo mundo e teve quem demonstrasse aprendizagem, por que então os demais não aprenderam? Essa pergunta é apenas retórica, a resposta está sedimentada: só depende do aluno estudar e aprender, pois o conteúdo foi passado da mesma forma. Para checar esse pressuposto, basta lembrar de reuniões da escola com os pais, essa máxima sempre aparece.
Um sistema baseado em aulas expositivas, como claramente é o nosso, parte do pressuposto que para desenvolver aprendizagem dos estudantes, basta disponibilizar informações sobre os conteúdos selecionados e organizados no currículo da escola. Por conta deste pressuposto, talvez, sejamos tão obcecados em dar todos os conteúdos programados para o ano, mesmo que para isso precisemos deixar a grande maioria dos estudantes para trás, sem aprender efetivamente os conteúdos abordados. É só observar o resultado das avaliações internas de qualquer escola. O percentual de alunos com notas abaixo da média é gritante, mas visto com uma normalidade arrepiante. A explicação para as notas baixas é muito simples: os alunos não estão interessados nos assuntos da escola. Será mesmo?
Não tenho outra metáfora mais suave para ilustrar essa tese: a escola é pensada no Brasil para ser um teste de sobrevivência à selva, cheia de armadilhas e missões perigosas que envolvem pântanos cheios de jacarés e passagem por areia movediça. Os sobreviventes tem um fluxo de escolarização regular, o que acontece com 61,4% dos jovens de 15 a 17 anos que cursam o ensino médio, de acordo com a PNAD de 2014. Os demais, por outro lado, não conseguiram atravessar o percurso, ficando reprovados sucessivamente (que é o equivalente a mordidas de um jacaré, na metáfora) e que muitos tiveram que abandonar a escola precocemente, ainda no ensino fundamental (o que é equivalente a ser engolido pela areia movediça do pântano metafórico).
O Brasil consegue colocar quase a totalidade das crianças na escola no primeiro ano de escolarização. Mas não consegue criar as condições para permanência. É evidente que essa questão não está associada apenas ao desenho pedagógico da escola. Há questões sociais graves em nosso país, e por falta de uma rede de proteção robusta para crianças e jovens, que as protejam dos vários fatores sociais de risco que as ameaçam diariamente num cenário de extrema desigualdade de acesso à oportunidades, a permanência na escola é um desafio que deve mobilizar vários setores do poder público, e não é, portanto, somente da escola. Mas daí afirmar que está tudo bem com o nosso conceito de ensino e aprendizagem e jogar tudo para a conta dos fatores externos, é demais. A cultura da reprovação, símbolo maior do esforço de jogar para os alunos a responsabilidade por aprender, contribui para que o estudante não permaneça na escola.
Quero falar mais sobre a reprovação trazendo a percepção de Sérgio Costa Ribeiro. Num artigo bastante citado, de 1991, intitulado A pedagogia da repetência, esse pesquisador afirma o seguinte: "Parece que a prática da repetência está contida na pedagogia do sistema como um todo. É como se fizesse parte integral da pedagogia, aceita por todos os agentes do processo de forma natural. A persistência desta prática e da proporção desta taxa nos induz a pensar numa verdadeira metodologia pedagógica que subsiste no sistema, apesar de todos os esforços no sentido de universalizar a educação básica no Brasil."
Uma educação emancipadora e que tem em sua base a garantia de direitos, não pode ter a possibilidade da reprovação como fio condutor do processo educativo. Ao contrário, o prazer em desenvolver conhecimentos significativos é que deve fazer parte do imaginário de educadores e estudantes no cotidiano escolar. Os sistemas de ensino e as escolas precisam estar orientadas para garantir aos estudantes o direito de aprender. A reprovação, ao contrário do que temos hoje, não pode ser utilizado como recurso didático para mobilizar crianças e jovens a estudarem mais. Um outro Projeto Político Pedagógico é possível, pautado numa visão mais inclusiva de educação.
Não quero passar a ideia de culpabilização das escolas e retirada das responsabilidades dos estudantes. Não é tão simples assim. O protagonismo estudantil é uma bandeira que prezo muito. Mas não podemos cair na tentação de, em nome desse protagonismo, criar um regime escolar baseado nas exceções, onde quem conseguiu por conta própria superar todos esses desafios é a prova de que não há problemas com o processo educativo, e sim com os estudantes. A escola é responsável sim em estabelecer um clima de ensino e aprendizagem inclusivo, que consiga dar conta em assistir necessidades educativas específicas dos alunos que não conseguem aprender somente com o que é apresentado de forma massiva para todos por meio das aulas. Outras possibilidades educativas precisam ser pensadas para não deixarmos nenhum estudante desprovido do seu direito de aprender.
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